Primeiros passos na terra do crocodilo adormecido
Na sequência da série "recordar é reviver", resolvi postar um pouco de minha experiência em missão de paz no Timor. (Isângelo)
“Senhor
pulsa, pulsa…” grita o garoto tentando chamar a atenção de malais (estrangeiros)
para os créditos de celular que esta a vender. Por mais corriqueira que a cena
possa aparentar, tem-se nela retratado um traço marcante da cultura
timorense. Por aqui, encontrar pedintes pelas ruas constitui caso raro.
Em regra, seja vendendo pulsas, peixes e frutas pelas ruas, seja retirando o
sustento do campo, o timorense vai levando sua vida.
A República
Democrática de Timor leste, um dos países mais jovens do mundo, ocupa a parte
oriental da ilha de Timor no Sudeste Asiático. Por quatro séculos, o Timor
esteve sob influência e domínio de Portugal. Em 1975, três dias após sua declaração
de independência, o país foi invadido pela Indonésia. Em 1999, sob a chancela das Nações Unidas,
por plebiscito, o povo timorense optou por se separar do país vizinho. Logo após
e durante a ocupação indonésia, o pais vivenciou períodos de grave convulsão
social e violência.
Hoje, 10 de
janeiro de 2012, completo dois meses de missão atuando como Policial das Nações
Unidas (UNPOL). Nas próximas paginas, divido parte de minha primeira
experiência na terra do crocodilo adormecido.
Ten. Sacchelli (PR), Cap. Senna (DF), Cap. Mauricio (SP), TC Valdemir (DF). |
CHEGADA
Foi uma longa
jornada até à área de missão. No dia 07 de novembro, deixei Brasília
acompanhando o Tenente-coronel Valdemir (PMDF). Cheguei a Díli no dia 11 de novembro,
após passar por Miami, NY, San Francisco,
Sydney e Darwin. No trajeto, muita paciência e jogo de cintura para
conseguirmos nos fazer acompanhados por nossas armas. Já em Sydney, nos encontramos com o Capitão
Mauricio (SP) e o Tenente Sacchelli (PR). O Major Fernandes (RJ) se juntou ao
grupo em Darwin.
Quase todo o contingente
brasileiro se encontrava no aeroporto para nos receber. Também participaram da
recepção os policiais Mark (Austrália) e Rupert (Nepal) os quais nos
acompanharam ao longo do treinamento inicial (Induction Training). O Capitão Robson (DF) organizou nossa
hospedagem no hotel Tropical, muito bem situado entre banco, supermercados e
restaurantes.
Com Major Fernandes (RJ) saboreando comida dita como tipicamente brasileira. |
Muito cedo, subsidiados
por informações do Capitão Rodrigo Campos (DF), ficamos sabendo que o TC
Valdemir seria o único do grupo a permanecer na capital. Particularmente,
sempre me visitava a lembrança as palavras do veterano Tenente Eurípedes (DF) “no
interior, mesmo se podendo pagar, é muito difícil conseguir algum conforto”.
Por isso, nesses primeiros dias, quase sempre ciceroneados pela Tenente Ligia
(SP), resolvemos nos permitir conhecer boa parte dos melhores restaurantes da
cidade.
Foram 22 dias
em Díli, entre induction training,
encontro do contingente brasileiro, jantar com embaixador e emprego provisório
em Dili Sub-station. Nesse último local, contamos com o apoio incondicional do
Capitão Miquelino (DF) que encontrava-se respondendo pelo comando da Unidade.
Induction Training |
RUMO AO
INTERIOR
De helicóptero,
nos deslocamos para nossos destinos definitivos. Enquanto o Major Fernandes e o
Cap. Mauricio se dirigiram para Oecussi, juntamente com o Ten. Sacchelli, segui
para Suai. Já no vôo, a mudança de cenário era nitida. São pouquíssimos os
povoados com melhor infraestrutura, e mesmo quando existem, encontram-se incrustados
entre montanhas e, com frequência, no topo dessas.
No heliporto
de Suai, fomos recebidos pelos Capitães Atila (PMBA) e Veloso (FAB). Atila
permaneceu conosco cerca de seis dias até seguir para sua nova lotação no
Distrito de Baucau. Nesse período, foi útil contar com seu apoio e
conhecimento da região.
A caminho de Suai/Covalima |
Chegamos a
Suai em um momento muito difícil para o Sub-distrito. O compound da UNMIT (sede local da ONU) há pouco havia saído de um incêndio.
O calor estava insuportável, cerca 44ºC. Havia quase dois meses que a região
encontra-se sem fornecimento público de energia. Pela falta de água potável,
Atila estava vivendo de água de coco. Para piorar, estava difícil de
conseguir acomodação. Por fim, em razão de problemas mecânicos ficamos sem
veiculo, passando a depender de carona.
Entretanto, aos poucos as coisas estão melhorando. A
reforma da UNMIT terminou, já possuímos uma mini academia e um refeitório
improvisado. Com a chegada das chuvas, o calor deu uma trégua. A Timor Telecom,
única companhia telefônica no país, retomou a venda de modem, outrora suspensa.
Poder falar e interagir com a família pelo Skype
faz toda a diferença. Ademais, os defeitos do veiculo foram sanados. Como os
carros são distribuídos por contingente, nossos problemas de locomoção foram
superados, pois somos apenas dois a dividir um carro.
ACOMODAÇÃO EM
SUAI
A titulo de emergência, Átila havia
combinado com a freira que administra um hospital/hotel na cidade para que pudéssemos
nos hospedar, por uma semana, em uma de suas enfermarias.
Por sorte, no
mesmo dia em que chegamos, circulamos durante à tarde e conseguimos nos hospedar
no hotel Castela Fronteira. As instalações desse hotel são novas, no entanto,
ao contrário do que poderíamos facilmente encontrar em Dili, nele não há ar
condicionado, internet ou TV. O café da manha é muito simples e com muito custo
se consegue serviço de lavanderia ou mesmo a limpeza do quarto. Sem contar que
a energia elétrica é disponibilizada somente à noite, quando, então falta água.
Ainda assim, creia-se, este é o melhor hotel da região.
Permanecemos
no hotel Castelo Fronteira por 30 dias, quando resolvemos nos mudar para uma
casa, que possui sala, copa, e quatro quartos. Cozinha e banheiro estão situados
do lado de fora da residência. Como o terreno situa-se em uma área alta de
Suai, temos uma bela vista do mar e da floresta que cerca a vila.
No inicio,
tomar banho de caneca e cozinhar em fogão a querosene era um problema. Aos
poucos vamos nos adaptando. De toda sorte, quando precisamos preparar pratos
mais complexos temos a cozinha da UNMIT a nossa disposição.
Distrito de Covalima |
ROTINA DE
TRABALHO
Invariavelmente,
por ser uma missão sem postos ou graduações, ao chegar novatos na unidade,
passamos a compor as escalas de patrulha, monitoramento e coordenação de operações
do Distrito (DOC). As escalas de DOC e patrulha funcionam em turnos sucessivos
de 08 horas. Para UNPOL, não existem finais de semana ou feriados. Já o
monitoramento consiste em se visitar os sub-distritos, mesmo os mais
longínquos, com o intuito de se avaliar as condições gerais de segurança,
procedimentos da policia Local, etc.
Particularmente,
passei por todas as funções descritas sendo que há cerca de três semanas fui
apontado como consultor de Policia Comunitária (Community Policing Adviser), cujos principais focos no momento são:
as eleições que se aproximam; o combate a violência doméstica; e a erradicação
das gangues compostas por integrantes de grupos de artes marciais. De toda
sorte, principalmente a atividade de monitoramento me deu a oportunidade de
conhecer todas os sub-distritos de Covalima bem como imergir na cultura local.
Estrada para Fatumean (Sub-distrito) |
MULTICULTURALISMO
Sem dúvidas,
uma das experiências mais marcantes na missão tem sido a interação com outras
nacionalidades. Em Suai, convivo com policiais dos mais diversos países, dentre
os quais: Bangladesh, Sri Lanka, Malásia, Filipinas, Nigéria, Zimbábue, Nepal,
Portugal e Austrália. Somam-se aos policiais, os componentes civil e
militar os quais possuem representantes de Egito, Rússia, China, Costa do
Marfim, Congo, Ruanda, Moçambique, Camarões, Índia, dentre outros.
Esta experiência
multicultural exige a observação de duas virtudes muito valorizadas por aqui: paciência
e tolerância. No mesmo sentido, também convém se evitar as armadilhas próprias
de posturas etnocêntricas.
Por outro
lado, o fato de ser brasileiro ajuda muito, seja pela admiração que os outros povos
nos dirigem, seja por nossa desenvoltura e talento natural em mediar e
solucionar conflitos.
Ademais, todos
por aqui estamos distante de nossa terra natal e de nossos entes queridos,
fator que ajuda bastante o clima de solidariedade entre os integrantes da missão.
A título de exemplo, cite-se a agradável noite de natal que tivemos em meio ao contingente
e imigrantes filipinos. De igual maneira, a festa de ano novo promovida pela sede
local da UNMIT rendeu boas conversas e risadas.
EXPECTATIVAS
Seria hipócrita
se dissesse que minha maior expectativa estaria relacionada as eleições gerais
que se aproximam, marcadas para ocorrer em março deste ano. Impossível, já que
em duas semanas, estarei partindo para o Brasil para reencontrar esposa,
filha (sete meses), familiares e amigos.
Por outro
lado, embora a saudade de casa aperte e muito, esses dois primeiros meses de missão,
sem embargo, constituíram um período de desafios, adaptação, conquistas, e crescimento
pessoal. Entretanto, o melhor é que ainda há muito por vir.
Finalmente,
gostaria de dividir uma última experiência. Há poucos dias, representei os
UNPOLs de Suai na primeira colação de grau realizada no Distrito. Foram muitos
os discursos, muitos mesmo (risos). Cerimônia de locais para locais. Contei com
a ajuda de um languange assistant (interprete)
para compreender o que era dito em tetum
(idioma local).
No evento, chamou-me
atenção, o fato de todas as falas ressaltarem a importância da paz, da
estabilidade e da independência política para que aquela formatura deixasse de
ser um sonho para se tornar realidade. Saber que nosso trabalha está fazendo a diferença
é muito recompensador. Penso não haver reforço maior a motivação para alguém que
se propõe a se aventurar do outro lado do planeta a serviço da paz.
Cap. Senna com Interprete Jhonny, primeiro economista formado em Covalima. |
Na
sequencia, fotos destes dois primeiros meses de missão:
Trabalhando com interprete |
Suai Vila |
Fim de ano – Suai Vila. |
Mercado sabatino – Fohorem (Sub-distrito) |
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